“Em relação à educação, é possível uma atuação individual, por exemplo, na defesa dos direitos da infância. Mas a prioridade é a defesa dos direitos coletivos”, afirma Promotora Evelise em apresentação do MPD

Por Hugo Fanton

O curso Cidadania e Direito à Educação promoveu duas atividades externas com a proposta de debater o papel do sistema de justiça na defesa do direito à educação e os mecanismos disponíveis para a exigibilidade jurídica (justiciabilidade) de direitos). As instituições visitadas foram a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio de seu Núcleo da Infância e Juventude, e o Ministério Público Democrático (MPD).

“Em relação à educação, é possível uma atuação individual, por exemplo, na defesa dos direitos da infância. Mas a prioridade é a defesa dos direitos coletivos”, afirma Promotora Evelise em apresentação do MPD

Em 28 de junho, participantes do curso foram à sede do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD), uma entidade não-governamental sem fins econômicos, cujos membros fazem parte do Ministério Público de todo o Brasil e tem como proposta, dentre outras, a democratização do acesso à Justiça. “O MPD acredita que a Justiça deve estar ao alcance de todos. Assim, um dos objetivos mais importantes de nossa associação é a democratização do acesso à Justiça. Além disso, formar multiplicadores e lideranças comunitárias, para que atuem diretamente em defesa de seus direitos e se fortaleça enquanto sociedade civil também  é objetivo institucional”, afirmou o promotor Roberto Livianu.

O encontro iniciou-se pela apresentação do Ministério Público (MP) pela procuradora Evelise Pedrosa Teixeira Prado Vieira, que descreveu a organização do MP em âmbito estadual e federal, ressaltando que não há ordem de importância entre os MPs, mas uma divisão de competências a partir das atribuições da Justiça Federal e das Justiças estaduais. “Na área da educação, a divisão de atribuições também se dá em função disso”. Ela explicou que a denominação promotor e procurador está relacionada a diferentes atribuições e competências que cabem a cada cargo.

Evelise deu sequência à sua exposição pela caracterização de quatro grandes áreas de atuação do MP: (i) seu papel na Justiça Penal, que não é necessariamente de pedir a condenação do réu, mas sim pedir a justiça, que pode ser, a depender do caso investigado, absolvição. “Outra parte importante é a atuação na área cível”. Ela conta que nos casos de (ii) ação de entre de pessoas físicas, o MP atua quando houver interesses de crianças (por exemplo, ação de cobrança de alimentos). Nos casos de haver crianças e adolescentes envolvidos, ou em outros determinados por lei de acordo com a necessidade de acompanhamento por justificado interesse público (por exemplo, em casos de saúde pública, ou meio ambiente) o MP – que não é nem autor, nem réu dessas ações –  exerce a função de “custos legis“, ou seja, deve verificar e opinar, com base na legislação, se o pedido feito ao juiz merece ou não ser atendido.

A procuradora também dá destaque à área dos (iii) interesses difusos ou coletivos. “Nesse aspecto, o MP tem atuado com muita força, em defesa de interesses sociais e no controle dos poderes públicos, em defesa dos direitos e interesses constitucionais”. Evelise exemplifica com a atuação no campo do meio ambiente, do direito à cidade, em defesa do patrimônio histórico e do patrimônio turístico. “Em caso de danos, o MP pode instaurar o Inquérito Civil, que é um procedimento pré-processual, que pode levar a um acordo com o causador”.

Também há a atuação no (iv) combate à corrupção, em defesa dos recursos públicos, para que sejam aplicados de acordo com a finalidade prescrita pela arrecadação de impostos. “A corrupção é o pior inimigo dos direitos humanos. O MP vem atuando, tentando responsabilizar os agentes públicos corruptos”. Ela enfatiza que grande parte das ações penais ou de responsabilização nesses casos são propostas pelo MP.

Já a defesa do direito à saúde promovida pelo MP é considerada, por Evelise, uma atuação precursora, pelo reconhecimento nos tribunais do direito aos medicamentos. Ela elenca ainda as ações em defesa de grupos que receberam da Constituição de 1988 um tratamento diferenciado, tais como os idosos e as pessoas com deficiência. “Em relação à educação, é possível uma atuação individual, por exemplo, na defesa dos direitos da infância. Mas a prioridade é a defesa dos direitos coletivos”.

Desse modo, o MP atua nos casos em que há violação de direitos e interesses coletivos, tais como contratos lesivos de planos de saúde, brinquedos que exponham crianças a situações de risco ou de propagandas enganosas. “Isso também ocorre no caso criminal, em que o compromisso do promotor é a ética e a aplicação da lei. Portanto, o promotor não acusa a pessoa em si, mas defende o interesse da coletividade”, explica Livianu.

Ele conta que o surgimento do MPD, há cerca de 20 anos, se deu com o objetivo de defender os direitos humanos, acompanhando a organização de associações dessa natureza na Europa, na década de 1960. “São núcleos de atuação não coorporativos, que surgem durante o processo de redemocratização europeu. O Medel – grupo de magistrados, envolvendo juízes e promotores – passa a expandir essa ideologia para os demais países, e disto surge o Movimento do MPD”.

Para Livianu, a atuação do movimento se dá no sentido de consolidar a democracia brasileira, pelo fortalecimento de multiplicadores de cidadania e pela produção material, como revistas e livretos. “Temos procurado produzir informações para que as pessoas atuem em defesa de seus direitos”. Ele destaca ainda a preocupação em humanizar a atuação do MP e trabalhar com “temas tabus”, como a saúde mental e a laicidade do Estado. “Existem outros atores importantes, como a Defensoria Pública. O MP é totalmente a favor do fortalecimento da Defensoria, como possibilidade de se assegurar o acesso à justiça a todos, por isso a importância da reforma legal que possibilita a atuação da defensoria em ações coletivas”.

Educação

Após a descrição da atuação do Ministério Público, a Promotora de Justiça da Infância e Juventude de São Caetano do Sul, Elaine Caravelas, abordou a importância dessa promotoria na implementação de direitos infanto-juvenis previstos da Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), além de normas específicas como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. “Nessas áreas, o MP atua em três esferas: (i) crianças em situação de risco, guarda, tutela, abrigamento; (ii) defesa de direitos metaindividuais; e (iii) apuração do ato infracional”. Elaine explica que a atuação pode se dar tanto em esfera administrativa como na judicial. “Nos casos de inexistência de escolas ou creches em um determinado local, por exemplo, a atuação acontece normalmente por procedimento administrativo, ou ICP, que pode levar à assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), que é homologado pelo conselho superior”. Caso não seja possível firmar o TAC, o promotor pode promover a ação judicial cabível, normalmente a Ação Civil Pública.

Existem, de acordo com a promotora, diversos casos de ações judiciais para a defesa do direito à educação, como as ações em defesa de creches e pré-escolas ou de propostas pedagógicas em escolas de tempo integral. “Atuamos também na área de evasão escolar. Nestes casos, o Conselho Tutelar é avisado e, quando não consegue resolvê-los, representa ao promotor, que pode abrir procedimento administrativo com base no ECA”. Deste processo pode resultar, diz Elaine, a mudança de guarda, a suspensão do pátrio poder ou até sua mudança. Também cabe ação penal por abandono intelectual, promovida pelo MP. “Nesses casos, chama-se os responsáveis para audiência no sentido de mobilizá-los, de mudar suas posturas, prevenindo-se de medidas mais graves.

Em relação às medidas socioeducativas, são recorrentes as medidas protetivas, e o problema mais comum é a dificuldade de matrícula no ensino fundamental (obrigatória, portanto) em escola em casos de adolescentes em Liberdade Assistida e ou em caso de prestação de serviços à comunidade. Elaine finalizou sua exposição ressaltando a importância do projeto de justiça restaurativa implementado em São Caetano do Sul, com apoio do Ministério da Justiça. “O objetivo é mediar as situações de conflito cometidos no interior das escolas. São situações corriqueiras e o objetivo é resolvê-las sem a necessidade de levar as pessoas envolvidas aos órgãos externos, repressivos e policiais”. Para tanto, se faz a implantação de Núcleos de Justiça Restaurativa nas Escolas, com forma de mediar esses conflitos e possibilitar sua incorporação como questão pedagógica (leia aqui reportagem sobre o tema).

Debate

Após as explanações iniciais, as pessoas presentes puderam expor dúvidas e questionamentos em relação ao MP e ao MPD. Inicialmente, tratou-se das possibilidades de atuação em casos individuais nas áreas de infância e do idoso. Nesses casos, a atuação da promotoria se dá com vistas à defesa de direitos e interesses da coletividade. Ainda que surjam de forma individual, têm questões que dizem respeito à coletividade.

A estratégia processual é de priorizar a mediação de conflitos judiciais e possibilitar acordos de implementação de direitos, através de TACs. Em relação a esses mecanismos, Evelise ressaltou que não se constituem numa violação de direitos – por não abrangerem em seus termos, necessariamente, toda coletividade – pois o TAC estabelece um compromisso mínimo e não a obrigação total. Além disso, seu estabelecimento não impede ações de outros promotores, do mesmo promotor, ou mesmo de associações civis em torno do mesmo objeto.

Também foi abordada a atuação em relação a grupos específicos, como quilombolas e indígenas, e em casos de racismo institucional, pelo não tratamento de questões relativas a relações raciais pelo próprio MP. “Há uma questão cultural nisso, que tem a ver com formação, a origem dos servidores que distribuem a justiça. É por isso que existe o MPD: existe uma fatia do MP que não pode ser considerada democrática. Há exemplos de atuação na área criminal, em que essa faceta não democrática aparece. Por isso a importância da Emenda Constitucional 45 que prevê controle social do MP”, afirmou Livianu, destacando ainda a possibilidade de recurso às corregedorias. “As novas gerações demonstram maior preocupação com esses temas, felizmente. Mas, os valores de quem distribui o sistema de justiça são os que privilegiam o direito patrimonial em detrimento dos fundamentais”;

Foram discutidas, ainda, as formas de encaminhamento de situações de urgência. Para tanto, vários canais devem ser procurados, afirmou Evelise, mas é preciso em alguns casos chamar a polícia ou o Conselho Tutelar, pois o promotor não tem a possibilidade de locomoção para atuar in loco. Quanto às dificuldades relativas à duração de processos, decorrentes do sistema processual, “infelizmente a situação hoje é essa”, afirmaram os presentes. Mas se há arquivamento de algum caso por parte do MP, isso não significa que nada mais possa ser feito. Existindo novos elementos ou novas provas, nada impede o desarquivamento do inquérito civil.

As possibilidades de acesso ao sistema de justiça também foram debatidas, ressaltando-se que a Justiça está organizada em comarcas e todos os municípios as possuem. São as promotorias, que atendem à população diretamente, as responsáveis pelo encaminhamento das questões. “Um dos papéis mais importantes do promotor é o atendimento ao público, inclusive com regime de plantão”, diz Livianu. Ele afirma, no entanto, que o MP está muito mal organizado, uma vez que sequer possui uma ouvidoria e muitas vezes não possui órgãos internos de auxílio, consulta, para casos mais complicados.

Qualidade da Educação

As pessoas presentes questionaram, ainda, as possibilidades e limites da atuação do MP em casos de qualidade do ensino, por exemplo, em situações objetivas como a falta de professores em determinada região. Em relação a esta temática, Livianu ressaltou que o MP “não é salvador da pátria” e que o direito possui uma dinâmica de razoabilidade e bom senso quanto à possibilidade de determinadas pretensões. “Durante muito tempo os administradores basearam sua defesa na ideia de discricionariedade administrativa e isso parece diminuir um pouco hoje. Mas a dificuldade de atuação é muito grande, pois envolve grandes questões sociais como desigualdades e corrupção”. Ele afirma que não cabe ao MP implementar políticas públicas e sim aos administradores, quem têm um conjunto de incumbências a partir da Constituição Federal.

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